sábado, 24 de março de 2018

P1009: A FALAR SOZINHO...

O REGRESSO

O homem sentado ao seu lado, ao balcão daquela cervejaria, olhava para ele com uma expressão entre o incrédulo e o trocista.

Há algumas horas que estavam ali sentados, bebendo cervejas atrás de cervejas, e conversando.
Não se conheciam de antes daquele dia, mas o facto de estarem os dois numa tarde de semana sentados ao balcão de uma cervejaria, tinha levado, depois de alguns apartes, ao início de uma conversa sobre tudo e mais alguma coisa e como não podia deixar de ser, ao estado do país.

Indubitavelmente a guerra do Ultramar veio à conversa e, perante os comentários errados e ignorantes daquele que estava ao seu lado sobre o assunto, ele decidiu dizer-lhe que tinha regressado há escassas semanas da Guiné, onde terminara uma comissão militar de 24 meses.

Ou pelas expressões do outro, ou pelas cervejas já bebidas, ou por uma necessidade interior de contar o que tinha visto e vivido (pois que à família e amigos lhe era difícil falar do assunto), deu por si a relatar as operações, as emboscadas, as colunas, as minas, as coragens e os medos por que tinha passado e estavam tão vividas e sentidas em si.

As palavras saiam-lhe em catadupa, e parecia que estava a falar mais para si do que para o outro, que o escutava, por vezes entediado e outras poucas vezes, interessado.

De vez em quando uma frase desgarrada do outro, tal como, “isso é impossível”, ou “foi mesmo assim?”, levavam-no a quase parar a sua narrativa, mas a verdade é que ele ansiava por falar sobre a guerra, e um desconhecido era o interlocutor ideal para o ouvir.

As cervejas iam sendo colocadas no balcão e bebidas, e agora era ele quem as pagava, porque o outro tinha feito menção de se ir embora e ele não queria ficar ali sozinho a remoer nas suas recordações e, sobretudo, não queria perder aquele momento de contar a sua guerra, particularmente a si próprio.

Parecia-lhe que à medida que ia contando os factos eles deixavam de fazer tanta mossa nos seus sentimentos e, embora sentisse que tudo aquilo o tinha marcado e continuava a marcar por muito tempo, percebia um certo alívio em libertar-se de algum modo daquelas memórias dolorosas.

Percebia que o outro o olhava de um modo estranho, às vezes quase com medo, mas ele ia-o tranquilizando com expressões mais calmas e sobretudo com mais uma cerveja.

Sucediam-se as emboscadas, as colunas, o medo, o anseio sentido ao levantar esta ou aquela mina.
Queria expressar as dificuldades, a sede, o medo do desconhecido, os sons da mata e os cheiros das bolanhas, mas as palavras pareciam-lhe poucas e sobretudo sem exprimirem verdadeiramente aquilo que ele tinha sentido e ainda sentia.

Falava-lhe já dos soldados africanos que com ele tinham combatido e sentia-os próximos, sentia uma saudade inexplicável daquelas noites no planalto, à luz da vela, tentando perscrutar para além do negro da mata que os rodeava.

A única coisa que naquele momento o ligava àquele balcão era a cerveja e a sua presença física, porque tudo o resto que era o seu ser se tinha transportado para a Guiné.

Falava de rajada, as palavras lançadas para a frente como facas, a incompreensão das vidas ceifadas tão novas, misturadas com uma noção de dever ainda tão arreigada, mas sobretudo o pensamento de que estava a falar para nada, que estava a falar para ninguém, porque afinal ninguém queria ouvir o que estava a contar.

Primeiro porque pela expressão do outro, percebia a incredulidade com que o ouvia, pois deveria parecer-lhe que ele estava a descrever um qualquer filme americano de guerra.

Depois, porque percebia também que o outro não queria ser incomodado com algo que podia ser verdade, muito verdade, e se assim fosse teria de ser objecto de uma reflexão que ele, o outro, não queria fazer.

Era essa a sensação que tinha desde que tinha regressado da Guiné!

Os que por aqui estavam e viviam as suas vidinhas, não queriam saber!

Tinha regressado bem? Estava vivo?
Ainda bem! Mas agora escusava de vir contar histórias de uma guerra longe, muito longe, que não tinha nada que vir afectar as suas vidas.

Por um lado as palavras sobre a guerra saíam da sua boca, mas por outro lado o pensamento insistente de que estava a dar uma seca ao outro, que não queria acreditar no que contava, que não queria incomodar-se com guerra nenhuma, cada vez mais era premente na sua cabeça.

De repente calou-se e olhando para o outro perguntou:
Você não acredita em nada disto, pois não?

O outro abriu um sorriso, e numa expressão amigável disse:
Eu logo vi que o amigo estava a brincar! Mas, gaita, que você tem cá uma imaginação!

Olhou-o então nos olhos e disse-lhe em tom pausado, mas firme:
Também eu pensava assim quando lá cheguei, e até ouvir e sentir os primeiros tiros a passarem ao meu lado. Só então tomei consciência que aquilo era uma guerra onde morria gente.
Não se preocupe com isso, e vamos beber outra cerveja.

Num instante olhou para o lado contrário, para que o outro não visse a lágrima teimosa que lhe rolou pela cara abaixo.

Estava no seu país, e ninguém o conhecia, ninguém queria saber o que tinha passado.

Era um estranho na sua própria casa!


Joaquim Mexia Alves 

8 comentários:

Carlos Vinhal disse...

Aqui está a resposta/consequência da necessidade de se organizarem convívios de combatentes e, para os mais "intelectuais", um ou outro blogue onde se pode escrever aquilo que ninguém quer (já) ouvir.
Um vizinho mais novo do que eu, que por isso não foi à guerra, disse-me uma vez que nós os combatentes nos reuníamos para festejar a guerra. Respondi-lhe que mais ninguém do que aqueles que a fizeram, a odiavam mais e a queriam esquecer.
Voltando ao teu texto, caro Mexia Alves, na verdade temos cá uma imaginação do caraças.
Abraço
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Ley Garcia disse...

Texto de grande profundidade e muito bem escrito. Consegue levar-nos até lá (mesmo a quem nunca foi lá). Parabéns

Carlos Pinheiro disse...

Texto explicito que reflecte, e de que maneira, a forma como a guerra foi ignorada e foi escondida aos olhos dum povo ordeiro e pacifico. Só os próprios e os seus familiares mais chegados e especialmente os familiares daqueles que por lá tombaram é que sabem dar o valor a textos como este. E ainda hoje há muita gente, alguns até pseudo cultos, que não sabem nada da guerra onde a nossa geração esteve envolvida dos pés à cabeça, Mas não sabem porque não querem. Há muita literatura que relata boa parte daqueles treze anos. E se procurarem vão encontar. Obrigado Joaquim por mais este grande texto. Um abraço.

Alberto Branquinho disse...

Joaquim

Gostei muito deste texto.
Não sei se a figura do "interlocutor" foi real ou inventado, mas no (teu) texto resultou muito bem.

Da minha experiência:
- Os que estavam em vias de... ouviam incrédulos e assustados essa necessidade de "desabafar". Como consequência disso, houve quem se "ausentasse" para França;
- Com os mais velhos era... ISSO.

Mesmos muitos anos mais tarde, alguém retorquiu ao meu "discurso" que nunca nós tínhamos tido situações como aquelas que "ele" tinha visto no filme americano "The deer hunter"(em Portugal "O caçador") - Vietnam. Quando eu tentava descrever-lhe situações idênticas vividas em Gandembel, não consegui e desatei a chorar de forma convulsa. Isto repetiu-se muito mais vezes (e, ainda, acontece).

Em Portugal os filmes sobre a guerra colonial são histórias de "rodriguinhos". Não há/não houve informação...
Abraço
Alberto Branquinho

joaquim disse...

Obrigado pelos vossos comentários.

Tirando o "estilo literário" esta conversa aconteceu mesmo comigo, numa cervejaria em Lisboa.

Foi mais ou menos nesse momento que decidi que o Portugal da Europa naquele momento não era o sítio ideal para estar e mal pude fui para Angola trabalhar.

Tinha chegado em Dezembro de 1973 e em 8 de Março de 1974 já estava a chegar a Angola.

E eu nem tive "grande guerra"!!!

Abraços
Joaquim

Juvenal Amado disse...

A história do Joaquim é no fundo a história do nosso regresso. Ninguém nos queria ouvir, incomodava o que queríamos contar, duvidavam que tinha sido real.
A mim aconteceu-me duvidarem da minha palavra quando perante o mapa da Guiné eu mostrei onde estive destacado 27 meses.
Disseram-me na cara que ali era zona libertada e nós não entravamos lá. Está claro que eram um bando de garotos que nem à tropa tinham ido ainda e independentemente das razões politicas que julgavam ter, eram completamente ignorantes quanto ao que de real se lá passava.

Anónimo disse...

Grande texto Joaquim Mexia Alves.
É um privilégio ser teu amigo.
Um dia destas pago-te uma cerveja !
Abraço GRANDE de Alcobaça.
JERO

Hélder Valério disse...

Pois meu amigo Joaquim, também quero comentar.

É realmente uma narrativa bem conseguida.
E é ainda mais porque sabemos que era (foi) assim mesmo.
Não queriam saber, porque assim não tinham que 'tomar posição'.
Eu também quando regressei (e nem sequer tive um 'guerra' próxima da de muitos daqueles que agora connosco interagem) não tinha muitos interlocutores.
Com a família não queria eu afligir. Com os amigos das várias "maltas" (grupos) quase sempre o assunto não interessava, pelas razões que outros comentadores aqui acima já adiantaram.
E havia também os provocadores... "então, mataste muitos pretos?", "então, deixaste lá muitos filhos?" gente(?) reles. Não prestavam!
No que diz respeito ao comentário do Branquinho e em que ele cita o filme "O Caçador" (título em português) lembro-me bem daquela cena em que um "veterano" recém chegado do Vietnam chega ao Bar na altura em que os jovens entusiasmados e envolvidos no processo de envolvimento "patriótico" decidem alistar-se e lhe perguntam como "é aquilo", na esperança de que podiam arranjar ainda mais motivações e obtiveram como resposta e "esclarecimento" um expressivo palavrão, que os deixou perplexos e atónitos.

Obrigado pela partilha, Joaquim.

Abraço
Hélder Sousa