Este texto foi recentemente publicado no Blogue dos Especialistas da BA12. Reproduzimo-lo aqui, com a devida vénia ao autor, Maj/PilAv (Ref) Alberto Roxo da Cruz, e ao Blogue dos Especialistas da BA12, que o editou.
GUINÉ 1973: UMA EJECÇÃO NO TANCROAL
Este
acidente ocorreu a cerca de 50km Nordeste de Bissau, na zona do Tancroal.
Eu
fazia parte, como asa, de uma formação de dois Fiat G91 R4. Estávamos a
desenvolver uma acção de bombardeamento, seguida de metralhamento, numa área
onde tinha sido referenciada, por informações, a existência de um Grupo de
atiradores de Míssil Strela. Creio que posteriormente estava prevista uma acção
de pára-quedistas ou outras forças terrestres transportadas por helicópteros
Alouette III.
Após
termos executado dois passes de bombardeamento com bombas de 50 e 200 kg,
iniciamos, um de cada vez, um passe de metralhamento de ângulos grandes (MAG).
Quando
iniciei o disparo das metralhadoras, senti um grande estrondo no avião e a
perda total de controlo do mesmo, assim como uma enorme quantidade de luzes
acesas e a piscar.
Não era possível identificar qual a origem da "avaria", pois as vibrações eram tão violentas que me faziam bater com o capacete na "canopy" do avião.
Ainda
tentei desligar os "Yaw dampers", mas logo vi que não era essa a
origem do problema. Como me encontrava em ângulo de picada de 60º decidi
ejectar-me, pois entretanto as vibrações passaram à sensação de espiral
descontrolada e tão violenta que perdi a capacidade de fixar a visão. Só via umas manchas verdes e cinzentas, que deduzo serem o solo e o céu que se
apresentava nublado com alto-estratos.
A
ejecção deve ter acontecido com cerca de 450 nós, que estava perto do limite do
cabo de disparo do pára-quedas de abertura (470 nós). Ainda arranjei tempo para
decidir ejectar-me com a alavanca superior, por permitir melhor posição e menos
danos da coluna.
Após
esse accionamento, só me recordo de uma explosão muito forte, e perdi os
sentidos. No entanto, fiquei num estado de semiconsciência, e que permitiu interrogar-me
como isto me tinha acontecido; “vi” a minha vida a correr em “flashes”
rapidíssimos. Segundo os dados da cadeira de ejecção, até à abertura do
pára-quedas decorre um período de 1 a 2 segundos.
Tive a sensação de terem passado mais de 5
minutos…Acordei muito lentamente, e um sentido de cada vez, ainda com o
pára-quedas em desaceleração. O
primeiro sentido a recuperar foi a visão com a explosão do avião, bastante
perto. Nessa altura ainda não ouvia nem sentia.
De repente, começo a ouvir um silvo, que provinha do pára-quedas. Seguidamente, sinto uma corrente de ar enorme na cabeça e vejo meu corpo pendurado, mas sem me conseguir mexer.
De seguida, reparo que tenho sangue a cair-me nas luvas e nos braços. Mais tarde é que vi que o sangue provinha de uma perfuração do lábio inferior por embate do meu estimado Breitling, que ainda hoje mantenho.
Aí,
apercebi-me que tinha perdido o capacete, que estava com o francalete bem
justo, assim como a máscara e a viseira colocadas. Quem quiser, que experimente retirar o
capacete da cabeça nestas circunstâncias. Nós tentamos essa experiência e
ninguém conseguiu!
A
cadeira naquela época ainda era a primeira versão da Martin Baker, que tinha
uma aceleração de cerca de 39/45 G's no disparo da cadeira. Logo aí sofri a
primeira compressão da coluna.
Seguidamente, a velocidade a que o pára-quedas abriu foi tal que senti um grande esticão. Após um grande formigueiro em todo o corpo, recuperei os movimentos. O tempo de queda foi de cerca de 15 a 20 segundos, mas naquelas condições é difícil medir o tempo. No entanto, ainda me permitiu desfrutar do maravilhoso silêncio do voo de pára-quedas.
A chegada ao solo não foi directa; fiquei pendurado numa árvore a cerca de 5
metros do solo. Fui deixando o pára-quedas deslizar até que a cerca de 2 metros ele se
desprendeu e caí desamparado no solo; mais uma compressão na coluna.
As
dores lombares e num joelho, bem com a perda de visão de um olho, foram as
sequelas de que logo me apercebi. Mais
tarde, confirmou-se que tinha ficado mais baixo 2 cm e que tinha fractura
ligeira da vértebra D5, lesão no joelho com derrame do líquido sinovial e lesão
traumática no olho esquerdo durante a ejecção, possivelmente pelo
“arrancamento” do capacete.
Começo a olhar para o ar, e vejo o meu chefe de parelha, o então Cor. Lemos Ferreira, comandante da Zona Aérea Cabo Verde e Guiné, a voar em círculos.
Pensei que me tivesse visto a aterrar, mas por eu já estar tão baixo, vim mais
tarde a saber que apenas viu a explosão do avião e, por um segundo, o
pára-quedas a ser “engolido” pelas árvores.
Seguidamente,
começo a ouvir vozes e alguns assobios, o que em África, devido ao silêncio que
todos conhecem, tanto podiam estar perto como longe. Imaginei que poderia ser
“recolhido” pela população ou pelos guerrilheiros que tínhamos acabado de
bombardear. Não iam de certeza levar-me um whisky com Perrier…
Entretanto, comecei a sair do estado de choque e comecei a “engendrar” a conversa que teria se fosse capturado. Estabeleci um plano, e fiquei a aguardar que me fossem recuperar. Ainda notei que o meu chefe de formação abandonou o local (deve ter aterrado “seco”), e apareceu outro Fiat a sobrevoar a zona, que mais tarde vim a saber ter sido o Ten. António Matos. Pensei cá para mim: estou safo, estava perto da Base e ainda não eram 15:00 horas.
A
clareira onde me encontrava estava rodeada de árvores, e apenas num pequeno
ângulo, é que tinha visão horizontal. Como
os Helis não tinham informação precisa da minha posição andaram ainda uns
tempos à procura, e eu que só tinha dois “flares”, resolvi accionar um quando
ouvisse um Heli mais perto.
Passado um tempo, que não consigo calcular, vi pela primeira vez um Heli; quando ele passou pela abertura das árvores, disparei o “flare” que me restava mesmo apontando ao Heli, pois era a maneira mais certa de não o atingir… Fui visto!
O
piloto do Heli tenta uma aproximação já na clareira, mas o capim, com 2 metros,
teima em não baixar com o vórtice do rotor principal. Nesta altura, em que o piloto tenta
baixar o máximo possível, eu noto que o rotor de cauda se aproxima
perigosamente de uns troncos secos e grossos que emergiam do capim já
“abatido”.
Entretanto,
eu que já estava em pé novamente, mas com muita dificuldade, reparo que o Heli
é um Heli-canhão. E agora? O
Heli-canhão descolou de Bissalanca, voou, no máximo meia hora, deve estar com
muito peso e eu embora magro, vou provocar “overload”.
Ainda
pensei que íamos lá ficar à espera de um Heli sem canhão. Mais tarde, fiquei a saber que tinham
descolado dois heli-canhão para me dar protecção e me localizar. Como a zona era muito problemática,
tomaram a decisão de me recuperar mesmo com o canhão. Como o Heli não conseguia aterrar,
aproximou-se de mim e fui içado à mão, ficando com o estribo de entrada entre
as pernas e agarrado à estrutura vertical onde fecham as portas.
Descolámos,
mas passado pouco tempo começo a escorregar, prevendo que me ia estatelar no
solo. O mecânico, atirador do canhão, ao ver a “cena”, largou tudo e enquanto me
agarrava pelo pescoço, ia gritando para o piloto aterrar o mais depressa
possível, que eu estava a cair.
Chegamos a Bissalanca, e eu, já acordado, noto que alguém estava à minha espera com um copo numa bandeja.Como sabiam que eu gostava, na altura, de me refrescar com água Perrier com um dedo de whisky, tentei sair em pé da viatura que me transportou do Heli para o Grupo Operacional, armado em herói; claro está que se não me agarrassem rapidamente, lá ia mais outra queda.
Bebi
o copo de um golo. Já na enfermaria da Base, começo a sentir a cabeça à roda e
um enjoo terrível. Pensei que me estava a acontecer alguma coisa pós-choque, mas não era mais do
que a “doença” provocada pelo “refresco” que os malandros dos meus amigos tinham
adulterado… O “refresco” da Perrier com um dedo de whisky era afinal whisky com
um dedo de Perrier. Ainda hoje não sei quem foi o artista...
Fui
para o Hospital Militar, regressei à enfermaria, e fui evacuado para a
“Metrópole” no primeiro avião militar.
Regressei
à Guiné nos primeiros dias de Fevereiro de 1974, e por coincidência (?), a
primeira missão operacional teve lugar no mesmo local onde me tinha ejectado. Ao fazer o passe de metralhadoras, o
dedo parecia que não queria accionar o gatilho; respeitei esta hesitação do
dedo e não premi o gatilho.
Na missão seguinte, tudo se normalizou, após uma consciente reflexão sobre a lei das probabilidades…
Esta minha ejecção foi já na minha segunda comissão. Eu
era um dos dois únicos pilotos que tinham sido nomeados para uma segunda
comissão, em Fiat, para a Guiné; o outro foi o então Ten. Cor. Vasquez, como
Comandante do Grupo Operacional.
Apenas
alguns dias após o 25 de Abril, convivemos com os guerrilheiros que combatíamos
em 1969 nas antiaéreas, onde eu fui protagonista e tendo feito parte das
missões mais complicadas, que incluíram uma tentativa (gorada) de, com a acção dos
pára-quedistas, os “apanharmos à mão”.
O
ataque às antiaéreas na zona do Quitafine a Sudoeste de Bissau, perto do rio
Cacine e a fronteira com a Guiné-Conakri, eram missões que tínhamos que fazer
para que os guerrilheiros não nos conquistassem esse território, pois as forças
terrestres já lá não tinham acesso…
Foram
conversas interessantíssimas, e pelas quais vim a saber que eles para não serem
afastados pelas bombas que rebentavam dentro do "caracol" (local onde
eram colocadas as antiaéreas), eram atados às armas. Normalmente usavam as ZPU-4 de 14,5mm
ou as duplas de 12,7mm. Nessa época ainda não tinham chegado à Guiné os Grupos
de mísseis.
No
entanto, em 1972 (?) já havia conhecimento de que estavam a ser treinadas as
equipas dos mísseis na URSS. Eu vim a saber disso porque sendo adjunto do
Comandante de Grupo, na segunda comissão, ao arrumar uns arquivos, encontrei
documentação de 1972 (?) com informação detalhada dos EUA sobre os mísseis
Strela, bem como um completo estudo do seu envelope de acção.
Também referiam ter informações fidedignas que o aparecimento dos mísseis SAM-7
estaria para breve no Teatro de Operações da Guiné e só mais tarde em
Moçambique. Na Guiné, nessa altura, já ninguém era apanhado de surpresa…
Mas
mesmo assim, e como o outro elemento da parelha sobrevoava a zona em altitude,
não viu a saída do míssil, eu fiquei convencido que se tinha aberto o painel
das metralhadoras do lado esquerdo, pois na inspecção antes do voo notei que já
apresentava alguma folga. Isto deu origem a uma consulta à Força Aérea Alemã,
que informou que apenas tinham conhecimento de um caso desses, a baixa
velocidade, e que isso tinha sido fatal para o piloto. A grande velocidade, o avião
destruía-se em voo, não dando a mínima hipótese ao piloto.
Mesmo
assim, devido a essa dúvida, foram inspeccionados todos os Fiat's e
descobriu-se que a maior parte apresentava fadiga de material na fixação das
metralhadoras. Isso obrigou à respectiva reparação em todos os aviões. A causa dessa fadiga e de algumas
fracturas terá que ficar confidencial… por enquanto!
Mais tarde, e já após o 25 de Abril, chegou uma informação proveniente do PAIGC, de que o meu avião (5409) tinha sido abatido por um grupo residente nessa área, e que até encontraram o meu capacete.
Mais tarde, e já após o 25 de Abril, chegou uma informação proveniente do PAIGC, de que o meu avião (5409) tinha sido abatido por um grupo residente nessa área, e que até encontraram o meu capacete.
As
razões porque fui “abatido” dentro do "envelope" do míssil terão
também que ficar pela confidencialidade… No entanto, continuo convencido que
não fui abatido pelo Strela, mas que tive uma violenta falha estrutural. Mas como me pareceu que era mais
conveniente, para os então “poderes constituídos”, tratar o acidente como
“abate”, em vez de falha estrutural, eu fui-me calando…
Alberto
Roxo da Cruz
1 comentário:
Na verdade era precisa uma certa dose de loucura para cavalgar nestas máquinas voadoras.
As minhas homenagens aos camaradas da Força Aérea caídos em missão, assim como aos sobrevivos de aventuras semelhantes à relatada, saídos praticamente ilesos por milagre ou porque ainda não era a hora deles.
Carlos Vinhal
Fur Mil Art MA da CART 2732
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