“E VOCÊ MATOU ALGUÉM?”
Falava
há mais de uma hora aos alunos do 10º Ano das “Artes” da Escola Professor Reynaldo dos Santos, de Vila Franca
de Xira, e sentia “com todos os meus botões” que era tempo de acabar. Com a
benevolência do professor de Geometria Descritiva, que estava presente, tive direito
a um “prolongamento” de mais 10 minutos.
Os jovens pareciam continuar interessados nas minhas opiniões sobre a
Guerra Colonial. Já tinha “passado” e comentado as imagens do “power point” sobre o meu livro “Golpes de
Mãos’s”, lançado em 2009, e fazia questão de terminar com uma mensagem que
fizesse ver aos meus ouvintes a importância do que era ter na vida um bom “Chefe”.
No meu caso tinha
sido um Capitão, que seguimos (e continuamos a seguir) até “ao fim do mundo”.
No caso deles é (tinha de ser) um Professor. Que sentissem que, além de Mestre,
fosse um exemplo a seguir – e a não esquecer – quando, num futuro próximo, deixassem
a escola e tivessem que enfrentar a vida.
Dei
tudo o que tinha nessa mensagem final. Que foi genuína, espontânea e sentida.
“Não
esqueçam os vossos professores. Sigam o seu exemplo. Um bom Chefe acompanha-nos
até ao fim da vida.”
Acabei a minha parte. Agradeci a atenção e perguntei,
por mera cortesia, se alguém queria pôr alguma questão. Sinceramente, depois de
uma hora a tal a ouvirem o “velho das barbas”, que tinha andado na guerra da
Guiné há cinquenta anos atrás, não esperava mais nenhuma pergunta. Enganei-me.
Um jovem levantou a mão e pediu para fazer uma última pergunta.
-
Avança, jovem.
-
E você matou alguém?
Avaliei
de imediato o jovem e pareceu-me que havia curiosidade sincera sem ser mórbida.
Não
esperava a questão mas não iria fugir a ela.
-
Sinceramente não sei. Como Já vos contei que era enfermeiro mas, quando andava
no “mato” em operações, tinha uma arma para defesa pessoal. Nos primeiros
tempos uma FBP (uma pistola-metralhadora) e, mais tarde, uma espingarda G3, que
se tinha revelado mais segura que a FBP.
Expliquei
depois que, antes de responder à pergunta, tinha que explicar o contexto em que,
antes de ser enfermeiro, tinha sido atirador.
Aconteceu
durante uma emboscada de nossa iniciativa. Na guerra da Guiné, e nos outros
territórios ultramarinos, raramente tínhamos oportunidade de ver o inimigo. A
guerrilha era isso mesmo. Ataques de surpresa às nossas tropas, que se
deslocavam em grupos numerosos e, muitas vezes, em viaturas. O inimigo, que “jogava
em casa” e conhecia bem o território, atacava-nos de surpresa em lugares de
passagem.
Muitas vezes escondidos em cima de árvores ou “resguardados” em
buracos junto ao solo.
Seis
meses depois de estarmos no mato “tínhamos aprendido” muito e, mais uma vez,
com o hábil comando do nosso Capitão, passámos a surpreender o inimigo
utilizando as suas próprias ”manhas”.
-
A acção dessa emboscada que vos vou contar foi de nossa iniciativa Ao amanhecer
estávamos escondidos no mato rasteiro, junto de algumas árvores, que ladeavam
estreitos “carreiros” de passagem das populações. E não só. A informação que era
utilizada também por terroristas mereceu a confiança do nosso comandante de
Companhia, que “apostou” numa emboscada à maneira “deles”.
E
assim se fez. Cada qual se instalou o melhor possível – sentado ou deitado – e
preparámo-nos para uma longa espera. Com o decorrer do tempo habituámo-nos ao
barulho envolvente de pássaros e macacada e muitos dos nossos militares não
resistiram a umas breves sonecas.
As horas passavam e nada acontecia. Por volta
do meio-dia algo me alertou e me fez abrir bem os olhos. Pareceu-me ouvir ruído
de conversas. Alguém se aproximava. E, de repente, vi a uma curta distância –
talvez a 20 ou 30 metros – três indivíduos de farda azul, sem dúvida guerrilheiros do PAIGC, devidamente
armados. Avançavam descontraídos, convencidos de que “estavam sós” .
Eram
inimigos a aproximar-se e à minha volta nada acontecia.
Será
que está tudo a dormir?
Não esperei mais tempo. Dessa vez fui dos
primeiros a disparar e fiquei com a sensação que tinha acertado num dos homens
que vinham ao nosso encontro.
Seguiu-se
ao meu disparo da G3 muitos outros tiros e os três homens de “farda azul”
caíram. Estavam mortos e bem mortos quando finalmente nos aproximámos dos seus
corpos. O chão ainda fumegava de tantos disparos.
À
distância no tempo confesso que relembro os momentos seguintes com alguma
perturbação e confusão à mistura. Sei que quando começámos a regressar ao
quartel de Binta – que ficava a uns bons 10 quilómetros do local da nossa emboscada
(Sanjalo, se bem me recordo) – fui escolhido para trazer na minha “mala de
enfermeiro” 3 granadas de mão capturadas ao inimigo. Confesso que não me senti nada
confortável com a sorte que me tinha calhado, mas na vida militar há que
aguentar e “cara alegre”.
Quando
chegámos ao quartel foi tempo de folgar e de festejar a nossa vitória do dia.
Entreguei as granadas do PAIGC ao quarteleiro – tanto quanto me lembro – e fui
para o meu quarto “particular”, que partilhava com o 1º.sargento e uns 7 ou 8
furriéis.
Quando
a noite chegou e consegui algum sossego dentro do meu “mosquiteiro” começaram
os meus pesadelos. Acordado e a dormir. Foi uma noite longa. Teria sido eu quem
matara um dos “turras”?
As
tarefas do dia seguinte atenuaram um pouco as minhas angústias mas a noite
chegou de novo e voltaram as minhas ansiedades.
Mais
uma noite em claro e, alta madrugada, arranjei um “alibi” para o meu
desconforto.
Afinal
não fui só eu a disparar. Para que estou eu a martirizar-me?
A
minha bala foi uma entre muitas. E poderia ter acertado ou não. Assunto
encerrado.
Voltando
à pergunta do jovem da escola de Vila Franca de Xira.
-
E você matou alguém?
Sinceramente
não sei. Julgo que não.
Mas
estou de bem com a minha consciência. Sei que fiz bem a muita gente. Vi lágrimas
nos olhos das gentes de Binta, quando regressámos em fins de Abril de 1966.
Vivemos de perto com eles cerca de dois anos. Recordo
esse momento de despedida. Em que também chorei. As memórias da guerra não têm
fim.
Uma
saudação especial ao jovem das “Artes” da Escola Professor Reynaldo dos Santos.
Fez-me bem
à alma responder à tua pergunta.
José Eduardo Reis de Oliveira