Desafiámos o nosso camarigo José Belo, a viver há quarenta anos no
extremo norte da Suécia, a descrever-nos o tipo de vida e as adaptações a que
um lusitano se teve que sujeitar para viver num ambiente que para nós é difícil
de imaginar... e de suportar...
A resposta está aqui, explicada pormenorizadamente por este nosso
camarada. Apreciem...
VIVER NA LAPÓNIA
Perguntam-me
como se consegue (sobre)viver na Lapónia. Em primeiro lugar há que ter em conta
que esta vastíssima área do Círculo Polar está enquadrada pelas
fronteiras da Noruega, Suécia e Finlândia.
Não sendo
propriamente países com dificuldades económicas, as realidades locais estão
muito distanciadas das realidades árticas russas, para citar o exemplo mas
próximo.
As
auto-estradas e estradas que ligam os centros populacionais estão bem mantidas
e a funcionar 365 dias por ano, independentemente das temperaturas, com um
sistema de limpeza de neve e gelo, assim como os aeroportos locais, com
carreiras regulares a funcionar também 365 dias por ano, independentemente das
temperaturas extremas.
Muito importantes
para a economia local (exportação que sai da maior mina Europeia de ferro
situada em Kiruna, para o porto atlântico norueguês de Narvik) as vias férreas
estão sempre abertas.
Um
serviço de urgências, com helicópteros-ambulância estrategicamente
distribuídos, garante um máximo de 30 minutos de voo até aos locais mais
isolados.
Os custos
destes serviços, somados ao facto de todas as auto-estradas, pontes (com
excepção da que liga a sul a Suécia à Dinamarca), barcos transportadores de
viaturas (serviço muito importante num país com inúmeros lagos) são obviamente
muito elevados. Não será por acaso que os países Escandinavos, com a Suécia à
frente, são mundialmente conhecidos pelos seus altos impostos.
Quanto ao
"porquê" de eu viver largos períodos do ano em tal exílio, e
procurando tornar uma longa história curta... A minha mulher é filha única de
um conhecido industrial sueco com negócios na Escandinávia e nos Estados
Unidos.
Este
senhor mandou construir uma casa para convidar os amigos e outros industriais
para umas férias exóticas, com passeios de trenó, pescarias várias, e nas horas
vagas dar uns tirinhos nos animais selvagens circundantes.
Como não
seria propriamente parvo, fez construir a casa junto do maior parque natural
europeu (e dos mais espectaculares da Suécia), que é o de Abisko.
A casa
está situada na margem norte do lago Torneträsk, precisamente a meio caminho da
cidade fronteiriça sueca de Karesuando a nordeste, e o porto atlântico
norueguês de Narvik a oeste.
A pequena
localidade de Karesuando é a situada mais ao norte da Suécia, onde termina a
estrada Europa-45 e a estrada do Reino-49.
Será
talvez interessante para alguns uma vista de olhos às fotos aéreas do
Google-Earth, tendo como referência a estrada que liga Kíruna a Narvik na costa
atlântica. Aí poderão observar montanhas e lagos mais espaços
infindáveis... mas casas?!
Cerca de
2/3 da população sueca vive a sul de Estocolmo e Estocolmo está a 1.700
quilómetros lá para o sul daqui.
A Suécia
tem uma área 14 vezes maior que Portugal com uma população menor (Para nos
"situarmos", a distância da fronteira norte sueca à fronteira sul é a
mesma que a da fronteira sul sueca à cidade italiana de Milão). Dentro
deste contexto não se torna tão estranho o facto de o meu vizinho mais próximo
viver a 200 quilómetros da minha casa… ou mais.
Como é
que aqui se vive tendo em conta os Invernos de 9 meses e os 4 meses de
escuridão total nas 24 horas do "dia", a somarem-se ao curto Verão de
semanas em que o Sol nunca se põe?
Uma casa
de madeira nórdica (e é importante ser de madeira!), com paredes duplas e largo
material de isolamento intermediário.
Isolamentos
extremos tanto em alicerces como no tecto.
Janelas
de vidros duplos que criam uma almofada de ar quente entre eles.
Porta
exterior dupla seguida de uma entrada que permita encerrar a porta da rua antes
de entrar propriamente na parte residencial.
Uma boa
caldeira dupla (!) de aquecimento a óleo, construída na cave da casa.
Um muito
razoável depósito exterior (subterrâneo) para o óleo.
Óleo
fornecido periodicamente por camiões cisternas.
A
temperatura em toda a casa mantém-se entre os 22 e os 24 graus, sendo esta a
recomendada como saudável. Nesta
zona ártica tanto o óleo como a electricidade são subsidiados em percentagens
muito elevadas pelo Estado, numa política inteligente de procurar manter alguma
ocupação populacional da área.
Aquecimento
eléctrico em forma de serpentina envolvendo os canos que ligam o furo de água
sob a casa (Esta água obtida de furos profundos mantém uma temperatura de 8
graus positivos ao longo do ano).
Um
"pequeno detalhe" a não esquecer... os esgotos. Os canos são
também electricamente aquecidos até atingirem o depósito exterior, também
subterrâneo, sendo este esvaziado periodicamente pela mesma firma que fornece o
óleo para aquecimento.
Quanto a
alimentos, e tendo em conta as quantidades necessárias para garantir
aprovisionamentos confortáveis, o problema é inverso.
A serem
guardados em arrecadação exterior esta tem que estar aquecida (!!!) às
temperaturas normais de um frigorífico, que estão à volta dos 8 graus
positivos.
Arcas
congeladoras também são importantes para guardar durante todo o ano as grandes
quantidades de carne selvagem aqui abatida e consumida, para além dos diversos
peixes locais como a truta e o salmão.
Entrando
em detalhe, um alce fornece muitos mais quilos de carne consumível que um
cavalo. As renas funcionam um bocado como os porcos na Lusitânia... tudo
se consome, desde o lombo, filé, febras, perna fumada, sangue para enchidos
etc.
A isto
somam-se as lebres e perdizes (ambas brancas!), alguns tipos de gazelas e...
por muito que aí me não acreditem... enchidos de carne de urso (Um pouco como o
nosso paio)!
E, um
detalhe importante: Toda esta lista, tanto de carnes como de peixes, é obtida a
umas centenas de metros da casa sem ser necessário o uso de dinheiro.
Quanto a
bebidas para fins "medicinais... não há casa sem um alambique (dos antigos
em cobre) que não produza vodka com percentagens de álcool que aí seria
vendido nas farmácias…
Para
frutas, vegetais, vinhos, drogarias e tudo o resto, tanto a cidade sueca de
Kíruna como a norueguesa de Narvik estão a cerca de 200 quilómetros.
Tenho que
concordar que talvez seja "um pouco" para se comprar tabaco ou o
jornal da tarde, mas por outro lado o bacalhau norueguês que para aí vai é em
grande parte da região de Narvik, só que... aqui se compra a menos de 80% do
preço que custa na Lusitânia. Deste modo, bacalhau e "coubinhas
quentes" por aqui não faltam.
Quanto ao
isolamento, ou dificuldades de transporte, é claro que quando os temporais de
neve, gelo e nevoeiro apertam não se pode esquecer que estamos muitas centenas
de quilómetros dentro do Círculo Polar.
Dá por
vezes trabalho extremo mas é um preço que vale a pena pagar tanto pelo sossego,
silêncio quase místico, e a grandiosidade desta natureza envolvente, nas suas
montanhas, bosques, rios e lagos que se veem de todas (!) as janelas da casa.
Detalhes
práticos... Um bom Jeep com tração às quatro rodas, de modelo de fábrica aconselhado
para estas condições extremas.
Pelo
menos duas "scooters" para a neve. Uma para transporte pessoal e
outra para rebocar trenós de cargas várias.
Existe
um aparelho muito prático que consiste essencialmente numa larga pá facilmente
adaptada à frente do Jeep, que permite remover a neve e gelo nas estradas
secundárias que ligam as casas às estradas principais (as tais que têm a neve
continuamente removida por empresas do Estado).
No que me
diz respeito, a casa fica situada a 10 quilómetros da estrada principal.
A ter que
deslocar-me coloco o aparelho á frente do jeep, e ao atingir a estrada
principal o mesmo é facilmente colocado sobre o tecto da viatura. É
aconselhável repetir esta operação nas estradas secundárias (mesmo que não se
tenha que viajar) para evitar um acumular demasiado de neve e gelo.
Mas, e
como tudo na vida, com um pequeno pagamento "amigo" aos condutores
que limpam dia e noite as estradas principais, estes por vezes
"enganam-se" e fazem também uns percursos pelas estradas secundárias.
Tendo em conta as centenas e centenas de quilómetros que limpam dia e noite…
não se notam estes "enganos" a nível central.
Quanto a
renas à frente dos trenós, ou os cães, claro que aqui os usamos. Mas
definitivamente não nos trabalhos ou actividades do dia a dia.
As
renas... são mais para passear os netos ou outros visitantes.
Os cães
de trenó... servem para algumas passeatas em busca de bons locais para abrir um buraco
no gelo para a pesca, ou, mais uma vez, para aquando da vinda de alguns
visitantes "turísticos", tanto suecos como dos Estados Unidos.
Em
verdade, os cães servem hoje mais para companhia do que para transporte útil.
Mas se
julgam que os cães comem pouco (8 de trenó e 4 de reserva)... posso garantir
que é um alto consumo "por quilómetro"... mesmo quando estão parados! E não é propriamente ossos o que comem!
Nestes bilhetes-postais
românticos não se pode esquecer que, hoje em dia, as manadas de renas em
deslocamentos são seguidas durante o Inverno por modernas e potentes scooters
para a neve, e nos reagrupamentos de Primavera e Verão são utilizados
helicópteros. Desde o ano passado começaram a ser aqui também utilizadas
os modernos "drones" aéreos para esse fim.
Para a
minha família, esta casa mais não é que um refúgio de paz.
Para a
manter com os níveis de conforto, modernidade e funcionalidade neste isolamento
extremo, é claro que se torna necessário um custo económico considerável e, não
menos, um planeamento contínuo e sempre bem antecipado.
As
profissões, tanto da minha mulher como a minha, permitiram, felizmente, os
largos períodos em que aqui nos refugiámos.
Já aqui
me visitaram alguns Lusitanos amigos, e por esta zona passeou um simpático
casal frequentador dos almoços da Tabanca do Centro.
Aos
restantes… Sejam bem-vindos!
José Belo
Nota: Boa parte das fotos apresentadas neste texto foi retirada do blogue da Lapónia, http://laplandnearkeywest.blogspot.pt/ , com a natural autorização do nosso camarada José Belo. Os nossos agradecimentos.