terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

P612: JERO - CRÓNICAS DOS TRIBUNAIS / 4

PALAVRAS E PALAVRÕES

O Juiz Dr. João Solano Viana era na vida pessoal e profissional um “gentleman”, que não dizia nem gostava de ouvir palavrões. Mas nem sempre se conseguia livrar desse desconforto pois em certos processos-crimes palavrões era o que não faltava…

Ao longo do tempo em que com ele trabalhei como escrivão foi-se estabelecendo entre nós um “código”, no que respeita a palavrões que eram ditos nas audiências. Concluída a prova era chamado ao seu gabinete no Tribunal de Alcobaça para dactilografar a sentença. Quando era preciso escrever palavrões o Dr. Solano Viana fazia uma pequena pausa e usava o “nosso” código: “cozer” e/ou  “carvalho” escrito pelo claro, claro está.

Um dia, no julgamento de um crime de estupro, uma testemunha chamada a depor pelo advogado de defesa afirmou ter visto o réu a ter relações sexuais com a queixosa, acrescentando pormenores que não eram nada vulgares serem vistos por terceiros…

Intrigado o Meritíssimo Juiz interrogou directamente a vizinha da queixosa, que vivia no lugar de Bemposta-Alcobaça. «Mas a senhora testemunha viu mesmo o réu meter o pénis na vagina da ofendida?»

Vi perfeitamente a cara de espanto da testemunha, que segundos depois respondeu: «Qual “peres”, qual “virgínia” Sr. Doutor Juiz. Foi mesmo o “carvalho”…»
E disse-o, pelo claro!

A veemência do seu testemunho teve peso do juízo final do Dr. João Solano Viana.

O réu escapou da cadeia porque entes da execução da pena juntou ao processo uma certidão de casamento, que provava que a queixosa tinha passado a ser a sua esposa.

Tenho uma vaga ideia de que o seu primeiro nome era Virgínia...

JERO

1 comentário:

Hélder Valério disse...

A língua portuguesa é muito rica!

Mesmo a que agora tem vindo a ser 'melhorada' (ou deturpada, segundo alguns pontos de vista), que contém inúmeros vocábulos capazes de serem multiplicados em significados...
Então os 'códigos'..... coisa linda!

Se já nesses tempos de trabalho do Jero era assim, como é que há quem se possa admirar do emprego de termos como "chocolatinhos", "fruta", etc. que eventualmente, mas só eventualmente, podem ter outro significado que não o que é o que se lê no imediato?

E os 'robalos'?

E aqueles outros que os "jornais de referência", com fortes ligações aos Senhores Juízes do processo do "preso 44", que vão captando e divulgando o que, certamente de forma inadvertida, eles, Senhores Juízes, vão vertendo para essas 'fontes' e que assim, a "opinião pública" vai tendo o privilégio de conhecer (ao que consta antes do acusado) também toda uma 'feliz terminologia' (os tais códigos) para significar coisas diferentes?
Já agora, "conhecer" e induzidamente interiorizar...

É uma alegria!

Aqui por este burgo, também um amigo que em tempos encontrei e que lhe inquiri porque é que tinha deixado de fazer certos trabalhos, me confidenciou que os habituais contratantes (ou seriam 'tratantes'?) o 'esclareceram' quando ele mesmo os inquiriu sobre essa situação, que "não tinha as quotas em dia"....
Confessou-me que demorou algum tempo a 'recuperar' da perplexidade quando, finalmente, percebeu que isso era código, as 'quotas' eram as contribuições, as alcavalas, as percentagens, o 'por debaixo da mesa', que ele deveria propor por antecipação e que nunca lhe tinha passado pela cabeça que tal era preciso fazer (santa ingenuidade!, mas ainda há gente séria!).

Mas voltando ao caso relatado pelo Jero, não há dúvida que muitas vezes as coincidências são mesmo imperiosas: então não se dá o caso de a personagem chamar-se Virgínia? Não explicam e depois admiram-se das confusões...

Abraço
Hélder Sousa